Neste início de século a sociedade, em seus setores sociais, econômicos e políticos, vêem apresentando múltiplas demandas ao sistema educacional. Isto, aliado à renovada confiança no poder da educação, na sua importância para o desenvolvimento do país, à extensão da oferta, o aumento do percentual de engajamento na escola da população em idade escolar, e as incertezas futuras que marcam esta época vêm pressionando o conjunto do sistema educacional a rever objetivos e prioridades, bem como à busca da melhoria da qualidade de ensino.
O tema “qualidade de ensino” encontra ampla discussão, com múltiplas aproximações que refletem ideologias, concepções e expectativas distintas. Uma forma de clarear um pouco mais esse tema é considerar os objetivos que se coloca à educação.
Uma formulação para a qualidade de ensino seria que “Uma escola de qualidade é aquela que estimula o desenvolvimento das capacidades cognitivas, sociais, afetivas e morais dos alunos, contribui para a participação e a satisfação da comunidade educativa, promove o desenvolvimento profissional dos docentes e influi com sua oferta educativa em seu ambiente social. Uma escola de qualidade leva em conta as características de seus alunos e de seu meio social. Um sistema educacional de qualidade favorece o funcionamento desse tipo de escolas e apóia particularmente aquelas que escolarizam alunos com necessidades educativas especiais ou que estão situados em zonas socialmente ou culturalmente desfavorecidas. “(Alvaro Marchesi & Elena Martín, Qualidade de Ensino em Tempos de Mudança, Artmed, Porto Alegre: 2003, p. 22).
Desta formulação depreende-se que a qualidade de ensino decorre de um conjunto de fatores, com dimensões múltiplas, que compreendem as pessoas e suas ações (estudantes, professores, administradores, etc.), o ambiente, incluindo a infra-estrutura física (interno e externo à escola) e o sistema (educacional, social, político) a que pertence a escola.
Assim, a melhoria da qualidade de ensino deve entendida como a atuação no conjunto, maior ou menor, desses fatores, buscando-se alcançar os objetivos educacionais. Deve-se ressaltar que as escolas, ou os sistemas escolares podem ser mais eficientes em uns e menos em outros desses fatores, distintamente umas das outras, refletindo características locais ou regionais.
No tocante ao xadrez estão explicitamente envolvidas os seguintes aspectos:
• desenvolvimento de capacidades cognitivas, sociais, afetivas e morais dos estudantes;
• desenvolvimento profissional dos professores e envolvimento no trabalho;
• inclusão social.
O jogo de xadrez tem sido muito utilizado em estudos sobre os processos de cognição humana, desde os clássicos estudos de Binet (Alfred Binet, Psychologie des Grands Calculateurs et Joueurs d’Echecs, Hachette, Paris: 1894 e Alfred Binet,. Mnemonic Virtuosity: – A Study of Chess Players, Genetic Psychology Monographs, 74,127–162, 1996 traduzido de Revue des Deux Mondes, 117, 826–859, 1893) que deram subsídios à elaboração dos conhecidos testes de QI no início do século XX, até as teorias mais modernas sobre a memória, no campo da psicologia cognitiva, (Fernand Gobet, Expert Memory – A Comparation of Four Theories em Cognition 66, p. 115–152, Elsevier, Amsterdam:1998), a aprendizagem (National Research Council, How People Learn – Brain, Mind, Experience and School, National Academy Press, Washington: 2000, p. 31-36, 43) e processos neurocognitivos (Michael Atherton , Jiancheng Zhuang , William M. Bart , Xiaoping Hu , Sheng He, A functional MRI study of high-level cognition. I. The game of chess em Cognitive Brain Research 16, 26-31, Elsevier, Amsterdan: 2003).
Muitos professores utilizam o xadrez como instrumento para trabalhar as capacidades relacionadas ao pensamento crítico, como auxiliar ao “aprender a pensar” que é mais importante do que aprender soluções de problemas específicos (Robert Ferguson,Teaching the Fourth “R” – Reasoning -Through Chess, sumário, United States Chess Federation, New Windsor: 1995). Para muitos jovens, o xadrez apresenta um potencial de auto-motivação bastante grande o que, nestes casos, favorece a utilização de processos mentais de alta abstração, que são próprios da prática desse esporte.
Durante uma partida, o jogador deve estabelecer um plano estratégico e operações táticas ao longo da mesma. Isto requer do mesmo não apenas a verificação de conhecimento anterior (recuperação de informações da memória) como a realização de uma verificação sistemática de possíveis combinações de lances, com o julgamento contínuo de cada situação resultante, em termos dos vários elementos do jogo (material e posicional). Deve, então tomar decisões, escolhendo alternativas que levem ao sucesso, dentro das finalidades do jogo.
A atividade enxadrística realizada no contexto educacional permite trabalhar a melhoria da auto-estima dos estudantes, visto que a sua iniciação não requer pré-requisitos (características físicas, sociais, etc.) e é acessível aos estudantes situados em qualquer altura da grade escolar. No ambiente escolar as atividades são planejadas por séries, permitindo igual envolvimento dos estudantes, mesmo que apresentem dificuldades ou defasagem de aprendizagem em disciplinas curriculares, podendo servir como elemento motivador para a superação das mesmas.
Já as características de socialização, advindas da prática do xadrez, são comuns ao conjunto de atividades lúdicas e das práticas esportivas educacionais, já de muito conhecidas pelos educadores e se expandem por não conhecer as limitações físicas destes. Elas se encontram dentro de um conjunto maior de atividades que favorecem o desenvolvimento social (artes em geral, festividades, serviços da comunidade local, etc.).
Quanto aos professores brasileiros do ensino básico, observa-se uma forte tendência de engajamento nos programas de capacitação e aperfeiçoamento profissional e iniciativas, com ou sem apoio do poder público, inovadoras do ensino, procurando a superação das condições adversas e a diversidade sócio-cultural da população atendida pela escola.(INEP-MEC, Estatísticas dos Professores no Brasil, Brasília: 2003, p. 38-41)
Como apontado, a motivação dos professores com respeito ao seu trabalho e a expectativa de novos rumos e do sucesso dos alunos sob sua responsabilidade são componentes importantes da qualidade do ensino.
A iniciativa inovadora nas práticas pedagógicas tem se apresentado de várias formas; a abordagem criativa de temas tradicionais, projetos interdisciplinares, temas transdisciplinares, a incorporação de tecnologias como ferramentas auxiliares ao ensino, etc.
Experiências foram observada no desenvolvimento do Projeto de Xadrez Escolar realizado pela Secretaria de Educação do Paraná desde 1980, que demonstram o potencial do xadrez como ferramenta pedagógica de apoio ao ensino das diversas disciplinas curriculares abordadas.
A questão da ação em direção à maior inclusão social de alunos em regiões desfavorecidas social e culturalmente pretende ser atingida pela vertente da manutenção, nos espaços de tempo ociosos da escola, das atividades de xadrez. O fato de possibilitar a permanência do estudante na escola, no contra-turno, envolvido com uma atividade extra-curricular é um ganho certo em seu desenvolvimento escolar, contribuindo diretamente para a diminuição significativa da exposição a situações de risco do meio urbano em que vive.
A ampliação da permanência dos estudantes no espaço escolar vem de encontro ao preceituado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação no que diz respeito ao ensino fundamental. Este aumento da permanência, que visa melhorar a qualidade de ensino, tem sido implementado justamente pela incorporação de atividades extra-curriculares, como a prática esportiva, artes em geral bem como ações da comunidade, todas elas, conforme já mencionado, com papel relevante no processo educacional.
No Paraná começamos o Ensino do Xadrez nas Escolas Públicas em 1980 e hoje contamos com mais de mil escolas estaduais com a oferta do ensino, tanto em aulas especificas como através de conteúdos transversais. Neste processo desenvolvemos recursos e metodologias que nos permitem atender, com qualidade, a mais de 300 mil escolares com custo inferior a um real por aluno.
O objetivo dos Ministérios da Educação e do Esporte de levar o xadrez a 20 mil escolas e 3 milhões de escolares nos próximos anos só pode ser realizado agregando parceiros de peso tanto no setor público como no privado. Os poderes públicos locais da área da educação e do esporte, municipal ou estadual, são parceiros obrigatórios enquanto o setor privado entrará sempre como facilitador e potencializador do processo.
Os primeiros passos já estão sendo dados através do Projeto Piloto, que está implantado em 5 estados: PE, PI, AC, MS e MG. São 250 escolas atendendo a quase 30 mil escolares e sua avaliação, prevista para terminar no próximo mês de julho, dará a forma definitiva deste projeto, mas já estão claros alguns aspectos importantes que integrarão sua expansão futura.
O primeiro é a relevância que necessita ser dada as características educacionais da região atendida e à capacitação dos docentes do ensino básico. Esta capacitação, por questões econômicas e de sustentabilidade, deve ser a mais descentralizada possível, seu aperfeiçoamento e acompanhamento serão à distância. Neste aspecto é fundamental o trabalho da Universidade Federal do Paraná, através do Centro de Capacitação Científica e Software Livre, no desenvolvimento mundial dos Servidores de Xadrez e na manutenção de um específico para o projeto.
A segunda é desenvolver, produzir e distribuir material instrucional de apoio de qualidade, tanto para docentes como para os alunos. Neste aspecto a importância da colaboração da comunidade enxadrística e pedagógica na elaboração do material e do serviço público na produção e distribuição é muito grande já que este material não está disponível no mercado.
Por último deve-se manter atividades motivadoras que realcem os aspectos lúdicos, criativos e éticos evitando excessos competitivos.
As dificuldades encontradas são importantes, mas não determinantes e o sucesso do Projeto Nacional depende mais da compreensão dos pedagogos de suas possibilidades que de limites econômicos ou políticos. Como este esclarecimento vem ocorrendo de maneira positiva, como demonstra o número de estados e municípios interessados em participar da próxima fase, acredito que em menos de uma década a prática do xadrez escolar nas escolas públicas brasileiras será corriqueira.
GM Jaime Sunye Neto
Coordenador do Projeto Nacional de Xadrez Escolar